A figura estava longe de ser apolínea, mas o que saía daquela garganta tinha a luminosidade do Sol e o brilho do ouro. Luciano Pavarotti não era, nem nunca pretendeu ser, o mais inteligente e instruído dos cantores. Bastava-lhe a musicalidade nata, a dicção clara, o timbre glorioso, os agudos fáceis (sem os quais nenhum tenor conquista a estratosfera do êxito). Na sua boca, a língua italiana – e Pavarotti era, quase exclusivamente, um cantor de ópera italiana e de canções napolitanas – sabia a ambrósia, cada nota doce e sumarenta como um bago de moscatel.
Luciano Pavarotti nasceu em Modena a 12 de Outubro de 1935, no seio duma família modesta (pai, padeiro; mãe, empregada numa fábrica de cigarros, como a Carmen), mas musical. O pai era um tenor amador, e Pavarotti sempre insistiu que, não fossem os nervos, teria tido um sucesso ainda maior que o seu (pode-se ouvi-lo, septuagenário, na gravação de “Luisa Miller”, de Verdi). Quanto ao filho, estava-lhe destinada uma carreira de professor primário (depois de abandonadas as esperanças de jogador de futebol), mas os dons canoros inflectiram-lhe a vida. Estreou-se no Teatro de Reggio Emilia em 1961, em “La Bohéme”. Dois anos depois, substituía Giuseppe di Stefano na mesma ópera, em Covent Garden. Seguiu-se Idamante no Festival de Glyndebourne, em 1964. O estágio final ocorreu em 1965, com a sua participação na companhia de ópera Sutherland-Williamson, em digressão pela Austrália. Pavarotti confessou que aprendeu muito com a grande soprano australiana e expoente máximo da coloratura, Joan Sutherland, nomeadamente a técnica de suporte e respiração durante o canto. Aprendeu por apalpação: durante os duetos punha a mão na barriga da cantora, para sentir os movimentos do diafragma! Aos 30 anos – a meta que se impusera a si próprio – estava pronto para conquistar o mundo. Foi isso que aconteceu quando Covent Garden montou, em 1966, uma nova produção de “La fille du régiment” de Donizetti para a Sutherland mais Pavarotti. Os nove dós de peito da ária “Ah! mes amis” ecoaram por todos os grandes teatros de ópera. Foi a primeira vez que os ouvi juntos.
A carícia natural do timbre
Nessa altura, Pavarotti ainda era um “galant’uomo”, de rosto simpático e estatura bem proporcionada. Dotado duma personalidade soalheira e sincera, estava especialmente vocacionado para comédias como “La fille” ou "L’elisir d’amore”, que representava admiravelmente. A força e beleza do registo agudo empurravam-no para as óperas com “happy end” triunfal, como “Turandot”. A carícia natural do timbre fez dele um grande expoente do canto belliniano e o seu sorriso vocal brilhou em “Un ballo in maschera” (é ouvi-lo cantar o “É scherzo od è follia”). Ópera italiana e, esporadicamente, o Mozart italiano (Idamante e o papel titular de “Idomeneo”) foram o seu “métier”. Durante os anos 1960 e 70 sucederam-se as gravações paradigmáticas com Sutherland, Milnes, Ghiaurov (a “companhia de ópera” da DECCA), que são o seu grande legado.
Com os anos e os prazeres da vida – adorava “pasta” – o corpo aumentou homologamente com o êxito. Os movimentos eram agora mais difíceis, exigindo que cantasse a maior parte dos papeis praticamente sentado. Abrandou o ritmo operático e passou a dedicar-se mais aos concertos e recitais. Ainda rodou um filme, “Yes, Giorgio” (1982), de triste memória. Fazia de galã, mas era filmado apenas da cintura para cima. Quando veio pela primeira vez a Lisboa, para um concerto no Coliseu em 1991, exigiu um carrinho eléctrico para o levar do camarim à boca do palco. Os cancelamentos de última hora eram, agora, frequentes. Foi banido para sempre da Lyric Opera de Chicago quando a directora-geral verificou que Pavarotti tinha cancelado dois terços das récitas que era suposto ter lá cantado ao longo dos anos. Em 1995, quando voltou ao Met para uma “reprise” de “La fille du régiment”, não conseguiu produzir um único dó de peito.
Pavarotti, a celebridade
Pavarotti deixara de ser um cantor de ópera para ser uma celebridade. O ponto de viragem fora o sucesso estrondoso do concerto dos Três Tenores em 1990, a propósito do Mundial de futebol, em Roma. Gravou com os “amigos” Elton John, Sting e Bono e juntou-se à multidão de fãs que choraram a morte da Princesa Diana em 1997. Entretanto criara uma imagem de marca exibindo um lenço de renda branco em recitais. Cabelo (ou capachinho), barba e sobrancelhas pintadas de preto de azeviche completavam o retrato. Curas de dieta rigorosa alternavam com banquetes pantagruélicos. O casamento de décadas (que lhe dera três filhas) desintegrava-se. Pavarotti passou a acompanhar e a promover uma cantora sem grande talento, Madelyn Renée. Foi apanhado a fazer a batota do “playback” num concerto em Modena, e levou uma pateada no Scala. Mas o povo perdoava e a popularidade aumentava porque o divo era, afinal, humano. Já tinha entrado no Guiness Book of Records como cantor mais aplaudido: 165 chamadas ao palco!
A última vez que cantou ópera foi no Met, em duas patéticas récitas da “Tosca”, em 2004. Em 2003 casou com a sua assistente Nicoletta Mantovani, de quem teve uma filha. Luciano Pavarotti ia a meio duma tournée mundial de despedida quando lhe foi diagnosticado um cancro do pâncreas, em Julho de 2006. Dele se pode dizer que esbanjou o talento a rodos que tinha, mas que compensou com o prazer que deu a milhões.
in Expresso